terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Literatura: Segredo das nossas Histórias



Nota Preliminar
Trecho do livro Relembranças (título provisório) a ser publicado.



Segredos no fundo do mar
 



A luz do lampião divisava foscamente o rosto do meu pai...

" - Essa noite sagrada que lembra o “nascimento-de-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo”, como ele dizia num só fôlego.
 
Treze anos!
Havia voltado mais cedo da roça. Tomara rapidamente um banho, comera alguma coisa e, calado como entrara, fui me deitar. Ainda não eram nove da noite. A casa em silêncio. Não conseguia dormir.
A luz do lampião divisava foscamente o rosto semicoberto do meu pai – um hábito antigo. Sua respiração compassada, o calor abrasador e os pensamentos confusos e rebeldes: sentia saudades da minha mãe, lembrava-me de Zezinho , de Anita.
O sino da igreja ao longe batera doze badaladas. Meus olhos se umedeceram ante o convite insistente... - “Vem, vem, vem...”
Levantei-me devagar, abri a porta da sala e saí. Ainda ouvi papai falar alguma coisa; ignorei-os e corri. Corri.







... o céu cintilante e a estrada deserta e escura...

A missa já havia sido celebrada. Entrei na igreja e sentei-me num dos bancos compridos. Ajoelhei-me e tentei lembrar da oração que me fora ensinada; tenso, só conseguia relembrar o sentido e as palavras iniciais. Esforcei-me, soletrando todo o abecedário. Desisti.
- Merda...
Permaneci por alguns instantes assim, com as mãos cobrindo o rosto. Suava. Ergui os olhos e procurei fixar as imagens que se escondiam na penumbra. Sorri sem o entender o porquê e saí va-ga-ro-sa-men-te. Do lado de fora, o céu cintilava e a estrada deserta e escura iluminada pelo reflexo do sol do outro lado do mundo.
- “Do outro lado do mundo fica o Japão...”, orgulhava-se de poder me revelar esses segredos guardados.
Algumas pessoas conversavam na praça. Acenaram-me. Retribui-lhes. Voltei à casa correndo e entrei enfurecido com o nada.
- “Já chegou?”
Continuei em silêncio.
- “Tem uma lembrança pra você...”
Mordi os lábios e comecei a chorar baixinho, pressionando o rosto contra o travesseiro para que papai não nos percebesse. Silêncio.
Ouvia o barulho do riacho que seguia indiferente em direção ao mar - outro segredo que me revelara certa vez: o destino dos riachos. Ouvia o silêncio.
- Não quero saber de porra nenhuma – murmurei entre os dentes para não ser ouvido.
Ao longe, fogos pipocavam, bem longe, cada vez mais longe... Devo ter adormecido.
Acordei de madrugada com o cantar estridente dos galos no quintal. O sucedido à noite voltou-me à memória. Senti vergonha e continuei com o rosto encoberto – às vezes, também tinha esse hábito. Fiquei assim não sei por quanto tempo. Voltei a adormecer e quando acordei meu pai já não estava no quarto. Talvez, pensei, tenha ido ao povoado. Relutante, fui até a sala e vi o pacote colocado sobre a velha cristaleira. Peguei-o tímido, examinei-o durante algum tempo e o abri devagar. Funguei e passei a mão no nariz, num gesto supremo para eliminar qualquer vestígio das lágrimas que desciam mansas... Guardei o presente na cômoda, sem desembrulhá-lo totalmente.



O riacho, o meu riacho agora, convidava-me para brincar.
O bule azul sobre o fogão de lenha conservara o café quente. Tomei um gole, deixei a caneca sobre a mesa e saí pela porta dos fundos, amarrando-a num prego estrategicamente fincado no portal. O dia estava bonito: o céu sem nuvens e uma aragem fresca incomum naquela época do ano balançava com suavidade os galhos da mangueira, cujas folhas, uma ou outra, voltavam a sujar o quintal varrido cedinho – como era o seu hábito.
O riacho, o meu riacho agora, convidava-me para brincar.
Corri, despi-me e mergulhei.
Fiquei assim durante algum tempo, não sei precisar. Nadava de um lado para o outro, buscava pedras na parte mais funda, tentando bater os meus próprios recordes. Pássaros voavam em todas as direções numa tremenda algazarra, fazendo-me companhia.
Quando voltei à casa percebi, ainda de longe, que a porta da cozinha estava entreaberta. Não a deixara assim. Apressei os passos e entrei. Antes que papai falasse qualquer coisa – a timidez imprimia-lhe sabedoria! –, corri em sua direção e o abracei. Pensei em agradecer, mas a voz não saiu. Abraçamo-nos forte e ficamos assim. O riacho seguia o seu rumo, os pássaros revoavam, o vento tocava-nos os rostos... Depois de algum tempo, segurou meus braços e afastou-me com delicada firmeza. Olhou-me nos olhos e disse, convidativo:
- “Vamos pescar?”






... não sei sequer se voltei inteiro e ou se parte de mim ficou por lá...

Desde que mamãe se fora, aquela seria a primeira vez que pescaríamos juntos: preparamos as iscas com fubá e o bornal com o farnel, pegamos os caniços e saímos os dois, descendo rio abaixo, pulando pedras.
Não me lembro quanto peixes pescamos - se pescamos; não sei exatamente o tempo que ficamos procurando o melhor lugar, não sei a que horas retornamos – sequer sei se voltei inteiro ou se parte de mim ficou por lá...
Recordo-me com saudades desse dia e da camisa listrada de azul e branco - presentes que ainda guardo com carinho nos escaninhos da memória que o tempo não desfaz. Voltei muitas e muitas vezes àquele riacho - ao nosso riacho! -, pulei sobre as mesmas pedras; hoje, algumas dezenas de anos depois, penso que muitos dos nossos segredos podem estar guardados no fundo do mar...  
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