terça-feira, 1 de julho de 2014

Análise Literária - O eu poético

"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
Autopsicografia
(fragmento de texto, de Fernando Pessoa)


A literatura é uma obra aberta, não estando, portanto, sujeita aos limites denotativos impostos por um texto não literário. As palavras e expressões assumem sentidos diferentes dos contidos nos dicionários, a ausência de pontuação – impropriedade do ponto de vista gramatical! –, nela constitui licença poética, estabelecendo um estilo próprio dos poetas.

Enquanto num texto técnico, por exemplo, a repetição de palavras pode, em princípio, constituir impropriedade que deve ser evitada, na arte, configura-se qualidade pelo que de expressivo contém em si.

O eu poético

O texto a seguir, de autoria do amigo Rafael Massoto, é um exemplo interessante da arte de poetar. Observe que, através de algumas deixas, somos capazes de re/conhecer o perfil do “eu poético” (ou eu lírico): a faixa etária, os gostos, o ambiente e a época em que vive, se está alegre ou triste – o que, afinal, pretende dizer e como o faz. De forma alguma esse retrato deve ser confundido com o autor: enquanto este é de carne e osso, aquele não passa de um personagem de ficção cujo papel é contar uma história, recitar um poema. Não existe, portanto, no mundo real.

[Sem título]

Quando eu falar dela
sei que vão dizer não extrapole
Eu direi sei que segurar o recalque não é mole
Ela é o drible do Garrincha
ela entorta a sua vista
Se você se acha o
skate

ela é o skate e a pista
Se você se acha a lata
ela é a lata e o
graffiti


Mulher igual não existe
nem um anjo resiste
Mesmo que ninguém em mim acredite
Não terei medo de relatar o que ela é
Ela é aquela que na praia cala as ondas
É a música inédita que você mal ouve se apaixona
É aquele pensamento bom que vem antes do sono
É a tal liberdade de que todo mundo que ser dono
Ela é o beijo que a minha boca mais deseja
E você a vê
mesmo que a distância impeça que a veja
Por fim só ela existir
ela acaba com todo meu abandono.


Análise Literária*
Exercício

Logo de cara, podemos depreender que o “eu poético” é um jovem apaixonado – ou uma apaixonada!, quem sabe – do tipo exagerado, cego de amor. Mais tarde, descobriremos que, no fundo, é um solitário.

As pessoas com as quais enaltece com bastante veemência as qualidades da amada parecem não mais acreditar nos elogios que faz: são repetitivos e exagerados, mas isso não o preocupa nem o esmorece. Atribui a rejeição à inveja incontrolável dos amigos.

“Quando eu falar dela
sei que vão dizer não extrapole
Eu direi sei que segurar o recalque não é mole”


É interessante notar que o eu lírico, ao não dispor de palavras adequadas para expressar os sentimentos ou por preferir ilustrar a sua admiração de tal forma que não haja dúvidas quanto à beleza decantada, recorre estrategicamente à metonímia - figura de linguagem que consiste no emprego de um termo no lugar do outro pela afinidade ou semelhança de sentido. Constrói imagens possivelmente familiares às pessoas que integram o grupo do qual faz parte – apaixonados por futebol e por skatistas, grafiteiros e outros jovens artistas. No íntimo, deve pensar que "somente assim poderão me entender...”.

“Ela é o drible do Garrincha
ela entorta a sua vista
Se você se acha o
skate

ela é o skate e a pista
Se você se acha a lata
ela é a lata e o
graffiti
 
 
 
A amada é imprevisível ("drible que entorta"), mas o completa ("skate e pista") por ser completa em si mesma ("lata e graffiti"). Na sensualidade, não é humana: é divina, sagrada e única, capaz de fazer perder a cabeça até os mais puros dos seres imortais.

“Mulher igual não existe
nem um anjo resiste”


Os amigos são-lhe importantes e não deseja perdê-los. Entretanto, está decidido: se tiver que correr riscos para não se afastar da musa que o inspira e dá sentido à vida, não terá dúvidas sobre o que fazer. Observe que "ela" é mais do que qualquer representação: "ela" é, no sentido de ser integral.

“Mesmo que ninguém em mim acredite
Não terei medo de relatar o que ela é”


Primeiro, reverencia a forte presença da mulher que, de tão impetuosa, chama para si toda a atenção e pode facilmente ser identificada e reconhecida entre mil... "Ela é aquela..."!

“Ela é aquela que na praia cala as ondas”
 
 
 
Depois, ressalta a beleza, a harmonia, a tonalidade, a sonoridade, os passos e os compassos marcantes que envolvem quem a observa desde a primeira impressão...

“É a música inédita que você mal ouve e se apaixona”

É o ser angelical, mais do que a mulher, que o acalma e o relaxa, preparando-o para o sonho e o despertar de um novo dia:

“É aquele pensamento bom que vem antes do sono”

Deslumbrado ante à beleza da amada, descobre-se no paradoxo de desejar possuí-la para não correr o risco de perdê-la - ao tempo em que sabe ser essencial deixá-la se sentir livre - não ser!, desta vez - para continuar desejada:

“É a tal liberdade que todo mundo que ser dono” 


 
 
 
E, então, advém o desejo de tocar e de ser tocado; não sabe o que pensar – não quer pensar, e não pensa! Dissimula a sua intenção: não é a sua alma que deseja a mulher, mas a sua boca, a parte sensual que completa e efervesce as carícias. E em sendo ela o próprio beijo, serão um só, indissolúveis...

“Ela é o beijo que a minha boca mais deseja”

Se não bastasse a estonteante presença, sabe que vive com a mesma intensidade e força na lembrança, tornando-se inesquecível e eterna.

“E você a vê
mesmo que a distância impeça que a veja”


Finalmente, absorto, exausto ("por fim"), fazendo uso de uma linguagem tímida, emocionada, entrecortada e quase infantil (repetição do pronome "ela"), confessa a razão de tanto amor e adoração. É o único trecho em que há sinal de pontuação - no caso, um ponto final, como se não precisasse dizer mais nada.

“Por fim só ela existir
ela acaba com todo meu abandono."


______________________

(*) Esclarecimento importante: os comentários acima não constituem, em nenhuma hipótese, a única possibilidade de se tentar analisar literariamente um texto poético; antes, são pontos de vista, resultados da minha visão de mundo, do momento em que os escrevi, dos sentidos e sentimentos que pude perceber. É possível enxergar outros aspectos e, claro, pintar com outras cores e nuanças a mensagem contida no texto. Se o autor vai concordar, aí é outra história!
Assim é a arte! – e é bom que assim seja...

 

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